8 de jul. de 2016

IN DUBIO PRO REO

 

 

A Lei é a razão, livre da paixão.

Essa sábia constatação de Aristóteles, cada vez mais atual, já velha de mais de 1.300 anos, está aí para nos lembrar que, fora da Lei, só existe a lógica do tacape, da destruição e do sangue, derramado por aqueles que preferem pensar com o porrete, abrindo a cabeça dos outros, do que abrir - figurativamente - a própria cabeça  para tentar compreender e melhorar o mundo.

O  STF, por meio do Ministro Celso de Mello, deu, esta semana, mais um corajoso passo rumo ao restabelecimento de um pleno Estado de Direito no Brasil, que se junta ao recente habeas corpus concedido ao ex-ministro Paulo Bernardo, por insuficiência de indícios que justificassem sua prisão, pelo Ministro Dias Toffoli, na semana passada.

Em um país em que - apesar de afirmar-se que  a prisão não é a regra - aproximadamente 60% dos presos estão atrás das grades sem nunca terem ido a julgamento - tomado pela falácia fascista de que é preciso endurecer as leis contra  suspeitos, aqui automaticamente  convertidos em "criminosos" e "bandidos" pela parcela mais medieval da opinião pública que faz questão de desconhecer  olimpicamente que ninguém deveria ser tratado nesses termos antes de julgado e definitivamente condenado - Celso de Mello ousou permitir que um réu recorresse em liberdade, como prevê a Constituição, mesmo depois de ter sido condenado em segunda  instância.

Tal atitude bastou para que fosse  transformado na bola da vez (o próximo é o ministro Ricardo Lewandowski) da malta fascista que ataca raivosamente todos aqueles que não fazem exatamente o que ela espera.

Não porque ela decida alguma coisa, mas porque seus donos assim o querem, já que é desavergonhadamente manipulada, embora - tendo a ilusão de que foi ela que construiu, com sua ignorância, hipocrisia e cabotinismo o discurso único e o senso comum que hoje imperam - não se aperceba de que não passa de massa de manobra de grupos que se assenhorearam de certos nichos do Estado - como se de seu próprio feudo se tratasse - e que parecem pretender, paulatinamente, ir tomando o controle da República.

O que estamos vivendo nesse país, hoje, é a contestação cotidiana da autoridade do STF, com uma sucessão de atos de exceção que a contradizem.

Por um lado, "aperta-se" a Suprema Corte, que, por vezes, cede diante da pressão avassaladora do fascismo nas redes sociais - ou, embora não possam reconhecê-lo, às ameaças voltadas diretamente aos próprios ministros e a suas famílias - muitas vezes escudada pela parcela mais parcial, mendaz e imediatista da mídia.  

Por outro, tomam-se medidas à sua revelia, como conduções coercitivas, escutas e vazamentos não autorizados, a imposição, praticamente forçada, por circunstâncias óbvias, do instituto da delação premiada a cidadãos sob a custódia do Estado, e, principalmente, prisões moralmente ilegais e abusivas - quando não há ilações que, mesmo remotamente, as justifiquem, acusa-se o "malfeitor" de obstrução de justiça - que se repetem a cada  novo dia, como ocorreu no caso do próprio Paulo Bernardo, e, agora, do Almirante Othon Pinheiro da Silva, como que testando, espicaçando, a determinação e os limites do Supremo Tribunal Federal no cumprimento de sua missão de salvaguardar a Lei, a Constituição e o Estado de Direito.

Ao conceder o pedido da defesa do cidadão condenado em Minas Gerais, o Ministro Celso de Mello não fez mais do que obedecer ao princípio de justiça universalmente aceito de que in dubio pro reo - nenhum indivíduo pode ser encarcerado se houver, ainda. qualquer dúvida, a propósito de sua culpa ou  responsabilidade.

A aprovação, pelo STF, por diferença de apenas dois votos, da possibilidade do cumprimento da prisão em regime fechado depois da condenação em segunda instância,  na análise de um caso específico, em fevereiro, não pode ser vista como pétrea nem definitiva, já que não foi aprovada ou regulada pelo Congresso Nacional, apesar de afetar diretamente os efeitos do que está disposto no artigo 5 da Constituição Federal, tratando-se, portanto, de matéria constitucional.

Mais grave do que isso, no entanto, foi a reação de parte da opinião pública e de juízes e procuradores que contestaram, agressivamente, sua decisão, pretendo atribuir-lhe a possibilidade de interferir com o andamento da Operação Lava-Jato.

Ora, nem a Operação Lava-Jato está acima do STF, ou da Lei, ou da Constituição da República. ou da opinião, livre, desimpedida, de qualquer cidadão; nem a Suprema Corte pode julgar, conforme as circunstâncias do momento.

Ela deve fazê-lo com vistas ao espírito da letra constitucional, que está muito acima, mutatis mutantis, do que qualquer operação jurídico-policial ou das declarações deste ou daquele grupo ou corporação ou das manchetes dos jornais e dos noticiários de televisão.

O discurso do combate à corrupção seria uma moda passageira e discutível, eventual e potencialmente útil ao  aperfeiçoamento das instituições, se não estivesse sendo utilizado, no Brasil - como aliás costuma ocorrer quase sempre na História - como instrumento político de mobilização de massa, de mudança de governo e de conquista do poder.

O STF não pode permitir que em nome dessas  manobras e do combate à corrupção, se solape a Democracia.

Que, com a justificativa de uma utopia proposital e interesseiramente manipulada - a venda à população da ilusão de que a corrupção pode ser eliminada pela mera repressão de quem a pratica - se estupre o Direito e se corrompa  um patrimônio muito maior do que pessoas, partidos ou empresas: o da Liberdade e o da Constituição da República.   

Não se pode negar a responsabilidade do governo anterior pelo atual estado dos fatos.

Pressionado por manifestações já infiltradas por adversários, principalmente depois de 2013, ele errou, e  muito, ao diminuir, em nome de um republicanismo caolho, a autoridade que o poder político - derivado da vontade expressa nas urnas pela maioria dos brasileiros - deve ter sobre o Estado e principalmente sobre  corporações que, pela própria natureza de suas atividades, exercem poder direto sobre os cidadãos, estimulando certa tendência autonômica, por extensão, autoritária - hoje já quase doutrina - que não se justifica nem se legitima, já que não deriva, justamente, do voto popular. 

Cabe agora ao Congresso, por meio de ampla aliança - política, por que de política se trata - que  deve incluir todos os partidos, fazer valer suas prerrogativas constitucionais e proceder à correção, com urgência, das brechas institucionais que favorecem o arbítrio e os excessos que se avolumam cada vez mais, como se fossem regra, e não uma situação  excepcional e anômala, que se aproxima, na prática e cada vez mais, de um verdadeiro Estado de Sítio. 

O STF não pode ceder à pressão e à chantagem a que querem submetê-lo, a todo momento, nesta grave quadra da vida  nacional, nem ao achincalhamento de suas decisões por alguns juízes e procuradores cujo ego é inversamente proporcional à sua  escassa idade, bom senso e experiência, ou - talvez porque não se ensine nos cursinhos que preparam para os concursos - ao seu entendimento do que são a Democracia e o regime presidencialista, repentinamente alçados a uma súbita e artificial notoriedade, por uma midia comprometida e irresponsável, que não sabe que está amarrando a sua égua justamente onde a onça bebe água.

A Suprema Corte deve, assim como a própria Constituição - a não ser que a Lei seja mudada pela sagrada vontade do povo  - ser eterna diante das circunstâncias.

A história passa. O STF vigia.

Ele deve permanecer, em benefício de sua reputação histórica, e da biografia de seus membros, imóvel como um rochedo na paisagem institucional da República, e imune. até onde for possível, às circunstâncias temporais, humanas e políticas.

Como uma bandeira cujo mastro, mesmo que se dobre momentânea e eventualmente à tempestade, sempre volta  a se erguer, soberano e sereno, em todo seu poder,  evidência e plenitude.

Tudo isso exige, sobretudo, firmeza, equilíbrio e coragem, por parte de uma instituição que está aí não para mudar o país, mas para evitar que as mudanças que eventualmente aconteçam - que não podem ser impostas, como está ocorrendo, na base da pressão, da intolerância e da chantagem - ofendam ou extrapolem o que está escrito na Carta Magna, colocando em risco os direitos dos cidadãos, principalmente aqueles que envolvem, como ocorre agora, a Incolumidade, a Opinião e a Liberdade.

2 comentários:

Zémocrata disse...

Mais uma vez, tiro o chapéu para você, Mauro, pelas oportuníssimas e encorajadoras observações sobre o papel do STF e sobre o momento delicado em que estamos vivendo. Já que os juízes são tão suscetíveis às opiniões dos fascistas e dos espertalhões, que tomem esse seu artigo como uma vacina e não nos deixem sós.

Oswaldo disse...

Prezado Mauro,

Você afirma que "o STF não pode ceder à pressão e à chantagem a que querem submetê-lo, a todo momento, nesta grave quadra da vida nacional, nem ao achincalhamento de suas decisões por alguns juízes e procuradores cujo ego é inversamente proporcional à sua escassa idade, bom senso e experiência, ou --- talvez porque não se ensine nos cursinhos que preparam para os concursos --- ao seu entendimento do que são a Democracia e o regime presidencialista, repentinamente alçados a uma súbita e artificial notoriedade, por uma midia comprometida e irresponsável, que não sabe que está amarrando a sua égua justamente onde a onça bebe água".

Pois bem, no momento em que se fala em implantar no Brasil essa aberração denominada Escola sem Partido, aproveito para alertar que o recém falecido Jarbas Passarinho, quando Ministro da Educação deste país (3 de novembro de 1969 a 15 de março de 1974), retirou do Ensino Médio o estudo da Filosofia sob a mesma alegação que hoje se faz: a de que tal matéria contribuiria para a formação de subversivos.

Lembro-me do querido Professor João Itagiba, em meio a um grupo de alunos do Curso Clássico, do Colégio Canadá, em Santos-SP, no início dos anos 70, indignado com o crime que o dito Passarinho acabara de cometer, certamente inspirado e induzido por influência externa. Dizia: "Os jovens vão desaprender de pensar!", explicando sua discordância com a medida tomada pelo governo militar, para quem quisesse ouvir, apesar dos temerosos anos que então vivíamos.

E, de fato, o que se viu dali em diante, no Brasil, foi o galopante esvaziamento do debate político-ideológico e o progressivo surgimento de uma juventude idiotizada, treinada para atuar sem contestação em prol do usufruto e do fortalecimento da cultura do consumo pelo consumo, o tal materialismo individualista, egoísta, predatório. Passamos a criar gilmares, moros, cunhas, aécios e todos esses que estão aí, abaixo da linha dos sessenta anos, formados sob os auspícios daquela Lei Passarinho.

Ah, dirão alguns, mas Cardoso, Serra, Temer e outros da mesma faixa de idade, hoje influentes na política nacional, formaram-se antes daquela e de outras tragédias impostas pela ditadura militar. Sim, mas estes, por óbvio, se incluem na cota dos indivíduos de pouco caráter, covardes, fracos, traidores de seus grupos e de suas próprias consciências, cota essa que, infelizmente, existe em todas as sociedades, de qualquer época. São os indignos.