18 de mar. de 2011

IMPRUDÊNCIA DIPLOMÁTICA

É preciso romper o silêncio da amabilidade para estranhar o pronunciamento público que o presidente Obama fará, da sacada do Teatro Municipal, diante da histórica Cinelândia. Afinal, é de se indagar por que a um chefe de Estado estrangeiro se permite realizar um comício – porque de comício se trata – em nosso país. Apesar das especulações, não se sabe o que ele pretende dizer exatamente aos brasileiros que, a convite da Embaixada dos Estados Unidos – é bom que se frise – irão se reunir em um local tão estreitamente vinculado ao sentimento nacionalista do nosso povo.

É da boa praxe das relações internacionais que os chefes de Estado estrangeiros sejam recebidos no Parlamento e, por intermédio dos representantes da nação, se dirijam ao povo que eles visitam. Seria aceitável que Mr. Obama, a exemplo do que fez no Cairo, pronunciasse conferência em alguma universidade brasileira, como a USP ou a UnB, por exemplo. Ele poderia dizer o que pensa das relações entre os Estados Unidos e a América Latina, e seria de sua conveniência atualizar a Doutrina Monroe, dando-lhe significado diferente daquele que lhe deu o presidente Ted Roosevelt, em 1904. Na mensagem que então enviou ao Congresso dos Estados Unidos, o presidente declarou o direito de os Estados Unidos policiarem o mundo, ao mesmo tempo em que instruiu seus emissários à América Latina a se valerem do provérbio africano que recomenda falar macio, mas carregar um porrete grande.

Se a ideia desse ato público foi de Washington, deveríamos ter ponderado, com toda a elegância diplomática, a sua inconveniência.Se a sugestão partiu do Itamaraty ou do Planalto, devemos lamentar a imprudência. Com todos os seus méritos, a Presidência Obama ainda não conseguiu amenizar o sentimento de animosidade de grande parte do povo brasileiro com relação aos Estados Unidos. Afinal, nossa memória guarda fatos como os golpes de 64, no Brasil, de 1973, no Chile, e a ação ianque em El Salvador, em 1981, e as cenas de Guantánamo e Abu Ghraid.

O Rio de Janeiro é uma cidade singular, que, desde a Noite das Garrafadas, em 13 de março de 1831, costuma desatar seu inconformismo em protestos fortes. A Cinelândia, como outros já apontaram, é o local em que as tropas revolucionárias de 1930, chefiadas por Getulio Vargas, amarraram seus cavalos no obelisco então ali existente. Depois do fim do Estado Novo, foi o lugar preferido das forças políticas nacionalistas e de esquerda, para os grandes comícios. A Cinelândia assistiu, da mesma forma, aos protestos históricos do povo carioca, quando do assassinato do estudante Edson Luís, ocorrido também em março (1968). Da Cinelândia partiu a passeata dos cem mil, no grande ato contra a ditadura militar, em 26 de junho do mesmo ano.

Não é, convenhamos, lugar politicamente adequado para o pronunciamento público do presidente dos Estados Unidos. É ingenuidade não esperar manifestações de descontentamento contra a visita de Obama. Além disso – e é o mais grave – será difícil impedir que agentes provocadores, destacados pela extrema-direita dos Estados Unidos, atuem, a fim de criar perigosos incidentes durante o ato. Outra questão importante: a segurança mais próxima do presidente Obama será exercida por agentes norte-americanos, como é natural nessas visitas. Se houver qualquer incidente entre um guarda-costas de Obama e um cidadão brasileiro, as consequências serão inimagináveis.

Argumenta-se que não só Obama como Kennedy discursaram, em público, em Berlim. A situação é diferente. A Alemanha tem a sua soberania limitada pela derrota de 1945, e ainda hoje se encontra sob ocupação militar americana. Finalmente, podemos perguntar se a presidente Dilma, ao visitar os Estados Unidos, poderá falar diretamente aos nova- iorquinos, em palanque armado no Times Square.

O CRISTO QUE VIVE ENTRE NÓS

O papa Bento 16, na biografia de Cristo que acaba de publicar, decretou, de sua cátedra, que Cristo separara a religião da política. Mais do que isso, participa de um dos equívocos de São Paulo – porque até os santos se enganam – o de que, se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, “vã é a nossa fé”. Cristo ressuscitou dos mortos, não em sua carne perecível, mas em sua grandeza transcendental. O papa insiste – e nessas insistências a Igreja sempre se perdeu – em que o corpo de Cristo ainda existe, em toda a fragilidade da carne, em algum lugar, ao lado de Deus. Com isso, o Santo Padre separa Cristo da humanidade a que ele pertence, e o situa no espaço da mitologia dos deuses pagãos. A afirmação mais grave do Papa, de acordo com o resumo de suas idéias, ontem divulgadas, é a de que política e religião são instituições separadas a partir de Cristo. A própria história do Vaticano o desmente. A Igreja Católica – e todas as outras confissões religiosas – sempre estiveram a serviço do poder político, e em sua expressão mais desprezível. Para não ir muito longe na História - ao tempo da associação entranhada entre os reis, os imperadores e o Vaticano, durante a Idade Média -, bastam os exemplos de nosso século. Os documentos existentes demonstram o apoio da Igreja a ditadores como Hitler, considerado, por Pio XII, como “um bom católico”. Mais recentemente ainda, houve a “Santa Aliança”, conforme a denominou o jornalista norte-americano Bob Woodward, entre o antecessor de Ratzinger e o presidente Reagan, dos Estados Unidos, com o propósito definido de acabar com a União Soviética. Por acaso não se trata de uma escolha política do Vaticano a rápida canonização do fundador da Opus Dei, como santo da Igreja, e o esquecimento de grandes papas, como João 23, e de mártires da fé, como o bispo Dom Oscar Romero, de El Salvador? A religião sempre esteve na origem e na inspiração da política, e, em Cristo, essa identidade comum se torna ainda mais nítida. O campo da razão em que a fé e a política se encontram é o da ética. A ética é uma exigência da fé em Deus e do compromisso com a vida humana. A política, tal como a identificaram os grandes pensadores, é a prática da ética. A ética política significa a busca do bem de todos. Nessa extrema exegese do que seja a ética, como o fundamento da justiça, a boa política é a da esquerda, ou seja, da visão de igualdade de todos os homens. Em Cristo, a fé é o instrumento da justiça. Quem quiser confirmar esse compromisso político de Cristo, basta ler os Atos dos Apóstolos, e verificar como viviam as primeiras comunidades cristãs, unidas pela absoluta fraternidade entre seus membros, enfim, uma sociedade política perfeita. Ao negar a essencial ligação entre a fé cristã e a ação política, o papa vai além de seu velho anátema contra a Teologia da Libertação, surgida na América Latina, um serviço que ele e Wojtyla prestaram, com empenho, aos norte-americanos. Ele se soma aos que, hoje, ao separar a política da ética da justiça, decretam o fim da esquerda. Esse discurso – o de que não há mais direita, nem esquerda – vem sendo repetido no Brasil. Esquerda e direita, ainda que a denominação venha da França revolucionária de 1789, sempre existiram. Na Palestina, no tempo de Jesus, a esquerda estava nos pescadores e pecadores que o seguiam, e a direita nos “fariseus hipócritas”, que, no Sinédrio, e a serviço dos romanos, o condenaram à morte. O papa acredita que a Igreja sobreviverá à crise que está vivendo. Isso é possível se ela renunciar a toda sua história, a partir de Constantino, e retornar ao Cristo que andava no meio do povo, perdoava a adúltera, e chicoteava os mercadores do templo. O Cristo que ressuscitou dos mortos está ao lado dos que vêem a fé como a realização da justiça e da igualdade, aqui e agora.

9 de mar. de 2011

O PETRÓLEO E A FANTASIA

Não há tempos fáceis, na vida de todos nós, e na vida das nações. Daí a necessidade de alguma evasão, como a do carnaval. Em um dos melhores filmes do neo-realismo italiano, “Pão, amor e fantasia”, o grande ator Vittorio de Sica faz um sargento dos carabineiros italianos, enviado para pequena cidade do interior. O enredo do filme, dirigido por Luigi Comencini, gira em torno da frase que lhe dá o título. Em uma das cenas, o protagonista vê o camponês pobre, que mastiga seu pão, e pergunta o que o recheia. - Fantasia, maresciallo, fantasia.

Todos nós comemos o nosso pão com a manteiga da fantasia, porque a realidade é aprisionadora. Somos todos, com grilhões menos ou mais pesados, prisioneiros das circunstâncias, servidores de contratos que firmamos ao longo da vida. Esse é também o fado das sociedades políticas. A fantasia das nações é a utopia. E estamos em uma época em que as utopias políticas, feitas de sonhos e dúvidas, se embaralham, parecem desfazer-se, diante de certo pensamento “científico”, neste momento do neoliberalismo triunfante, cuja presunção é a de que a transcendência não passa de uma equação com fatores falsos. Nessa negação da transcendência até mesmo algumas confissões religiosas militam, ao se aliarem aos senhores do mundo.

Ainda agora, um conhecido homem da ciência, Raymond Kurzweil, benéfico inventor dos sistemas digitais de leitura ótica e sonora (o que nos permite ditar para os computadores), ameaça com o suicídio do homem e nos dá a data marcada, 2045 – daqui a 34 anos. Segundo Kurzweil, os computadores assumirão a nossa inteligência, e seremos subordinados às suas decisões, formuladas pelos seus circuitos, mais velozes do que os nossos neurônios. O homem, então, não morrerá mais, porque a ciência cuidará de seus corpos de forma perfeita, criando e substituindo a perecível matéria de seus órgãos. A quem estaria destinada a imortalidade? A todos os bilhões de seres humanos, ou só aos escolhidos? A vida seria conduzida pelos organismos mortos, como são, e sempre serão, os computadores. Enfim, o que Kurzweil sugere, com sua profecia, é o assassinato da alma, o fim dos sentimentos humanos, o fim da vida. E disso não estamos longe, se não formos capazes de reagir, de refletir com a inteligência filosófica e humanista. Como assinala o físico Ubirajara Brito, a tecnologia sempre foi moderada pela filosofia e pela arte, e a arte e a filosofia foram sufocadas pelo pensamento único triunfante. Os Estados Unidos, movido por esse ânimo, continuam iludidos pelo destino que lhe assinalou Ted Roosevelt: o de ser a polícia planetária, e procuram os meios mais seguros para intervir no deserto encharcado de petróleo. Duas derrotas, a do Iraque e Afeganistão, não lhes bastam.

E como de petróleo se trata, temos que atentar para as preocupações de Washington com relação ao nosso continente. Segundo revelações recentes do Wikileaks, divulgadas pela imprensa argentina, os Estados Unidos consideram o Mercosul uma aliança contra seus interesses, e tentam impedir que o Paraguai, que tem o poder de veto, aprove, no Senado, a incorporação da Venezuela ao bloco. Não devemos nos preocupar só com o óleo de Maracaibo, mas também com as jazidas do pré-sal do Atlântico brasileiro.

Felizmente, para contrariar Mr. Kurzweil, o futuro do homem está em si mesmo, em sua capacidade de indignar-se, de criar, de ter a sábia fantasia da transcendência, e de recuperar o controle da razão humanística sobre as descobertas da ciência e sua aplicação tecnológica. Enfim, temos que recuperar a verdade dos manuscritos gregos de Hermes Trismegisto, traduzidos por Marsilio Ficino em latim: o verdadeiro milagre é o homem.


ROSA E OS SERTÕES

A morte de Aracy Guimarães Rosa faz-me retornar aos sertões mineiros, transfigurados pela narrativa do grande escritor. Quando avançava a construção de Brasília, e isso coincidia com o surpreendente êxito de seu livro mais conhecido, o engenheiro e político Israel Pinheiro, homem prático, disse que a nova capital acabaria com o sertão de Guimarães Rosa. Ele fundava o seu juízo na realidade geográfica: as mais fortes passagens do grande romance se localizam na margem esquerda do São Francisco e avançam por Goiás, subindo os afluentes ocidentais do grande rio.

O progresso, previu Israel, transformaria os costumes e a economia da região. É certo que muita coisa mudou. A civilização do couro, como atiladamente Affonso Arinos a localizara ali, foi substituída pelo agronegócio, muito mais rendoso do que a pecuária extensiva. A velha vida rural, centrada nos pequenos povoados e fazendas, se reduz, cada dia mais, às propriedades pequenas e médias, de exploração familiar, ou quase familiar, enquanto se estendem as grandes plantações de soja e milho, fertilizadas e molhadas pela irrigação artificial. Não há mais carros de bois, a não ser como adorno diante das sedes das propriedades rurais. Os bois de lida, que puxavam arados e outros implementos, desapareceram. Os cavalos ainda são úteis, mas apenas dentro das propriedades, ou como animais de estima, não mais para as viagens, ainda que curtas. O roceiro cedeu seu lugar ao operário, que manobra as pesadas máquinas agrícolas, e, no cuidado dos bois confinados, moem grãos e gramíneas, alimentam os cochos, despacham as reses gordas para os frigoríficos. Não há mais vaqueiros, nem comitivas, como a que ele acompanhou há quase 60 anos.

Guimarães acompanhado do fotógrafo Eugênio Silva, viajou pelo Urucuia, pela primeira vez, em 1952. Não há notícia de que o haja cruzado antes, embora tenha nascido em Cordisburgo, no vale do grande rio. Foi nessa viagem que ele pôde ver de perto os vastos gerais do Oeste e conhecer suas grandes figuras humanas, como Manuelzão, que o impressionaria pelo porte e pelo saber. Mas o verdadeiro grande sertão, que ele descreveria em sua obra literária, Guimarães já o trazia na mente.

O grande escritor tinha o talento de repórter. Médico da Força Pública de Minas, pôde vasculhar os arquivos do 9º Batalhão de Caçadores, sediado em Barbacena, e do 3º, de Diamantina. Nesses arquivos soube da existência de personagens como os Militão e os Guerreiro, famílias adversárias do Médio São Francisco, e dos grupos de jagunços que percorriam a região nos primeiros anos do século 20, sob o comando de chefes políticos que retrataria com os nomes literários de Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Zé Bebelo. Médico de roça, em Itaguara, no Vale do Paraopeba, outro afluente do São Francisco, Guimarães pôde penetrar na genuína alma mineira, que ele mostrará nos contos de Sagarana (principalmente em “O Duelo”). A visão quase humana dos animais, como em “O Burrinho Pedrês” e “Conversa de Bois” faz parte da transcendentalidade mineira do Alto São Francisco. A linguagem surpreeendente de “Corpo de Baile” e “Grande Sertão” não é o traço mais profundo da literatura de Rosa. Ainda que ele não tivesse a sua extraordinária cultura literária, sua obra teria sido da mesma forma monumental. Mais do que tudo, Guimarães foi um interessado no homem, que, nos sertões, é obrigado a ter um caráter mais nítido, a viver e a morrer com fé, paixão e coragem.

É uma pena que a viúva de Guimarães tenha sobrevivido ao grande escritor em completo recolhimento. Faltou, em tudo o que se disse sobre o grande escritor, o melhor depoimento, que seria de Aracy, sua discreta companheira por quase trinta anos.

ALÔ, ALÔ, TELEBRAS, SOCORRO !


O Governo Federal deveria aproveitar os quase 20 bilhões de dólares que vai receber de dividendos de estatais este ano (principalmente o BNDES) e capitalizar a Telebras, para que esta voltasse a atuar no varejo no mercado brasileiro de telecomunicações, um dos mais caros do mundo. Além das telecomunicações serem estratégicas do ponto de vista da segurança nacional (em caso de guerra vamos ficar na dependência de técnicos e multinacionais estrangeiras?), já ficou provado, como aconteceu com os bancos, que a melhor forma de regular o mercado não são as agências reguladoras, e uma legislação que protege desde o início as grandes empresas de telecomunicações, mas sim a presença de pelo menos uma boa estatal no mercado, oferecendo tarifas justas, para se evitar o estado de permanente atentado à economia popular e de assalto ao bolso dos consumidores. Chega de hipocrisia. A maioria das empresas de telecomunicações que vieram para cá nos anos 90, ou tem participação estatal, ou são, direta ou indiretamente, controladas pelos seus respectivos governos, que interferem nas grandes decisões (principalmente na hora da venda de ações), como é o caso da TIM italiana, da Telefonica, da Espanha (Vivo e Telesp) e da Portugal Telecom.

TEMPOS DE LUZES, TEMPOS SOMBRIOS

No mesmo momento em que se divulgava o excelente desempenho da economia brasileira, com o aumento do PIB em 7.5% no ano passado, a crônica policial nos dilacerava a alma: uma menina de seis anos estrangulada em precário hotel de periferia, um rapaz de 22 anos que matou os pais, porque eles reclamavam de sua indolência, troca de tiros entre policiais baianos, um homem embriagado que joga seu carro contra ciclistas indefesos.

O mundo é um espaço perigoso. Estamos sempre driblando a morte e os seus emissários. Uma teoria veterinária conclui que é da natureza do homem matar o semelhante. Uma idéia ancestral de transcendência, no entanto, ampara a espécie. Ao descobrir que podia pensar, e que não conseguia explicar a vida, o homem primitivo intuiu a existência do sobrenatural e estabeleceu com essa possibilidade uma aliança, que os teólogos definem como eterna. Com ela, robusteceu-se a coesão dos grupos, e o destino do homem, como espécie, se subordinou à idéia de Deus.

A idéia não é nova e foi exposta incontáveis vezes por pensadores crentes e agnósticos: na medida em que a ciência avança e realiza os milagres que antes só se esperavam dos santos, a força disciplinadora da fé se reduz, e o fanatismo a perturba. As virtudes escapam dos lares sem esperança, e as noções do bem e do mal se confundem nas sombras da miséria, ou nas fímbrias da paranóia, essa enfermidade antiga e que parece endêmica. Por mais se tornem comuns crimes contra as crianças e os velhos, esses delitos sempre nos lanham com mais profundidade, porque as vítimas não têm como se defender.

Há 34 anos, um autor norte-americano, conservador de origem marxista, Christopher Lasch (1932-1994), publicou intrigante livro sobre a família e o lar – tendo em vista os padrões sociais da classe média americana – com o título de Refúgio em um mundo sem coração. Sua conclusão nuclear é dialética: as ameaças externas à família (as decorrentes da sociedade de produção capitalista) que açulam os indivíduos à competição a qualquer custo, em lugar de consolidar o afeto e a solidariedade nos lares, desfazem esses sentimentos. A família mais se desagrega quanto mais ameaçada se vê.

A menina Lavínia morreu, entre outras razões, porque seu pai guardava dois mil reais, a fim de dar entrada em um carro. O automóvel é hoje o primeiro símbolo de realização. Os dois mil reais eram vistos, pela amante do pai da menina, como pequena fortuna. De acordo com as evidências, Lavínia seria o objeto de troca, e por isso foi seqüestrada, levada ao hotel e assassinada.

Os estudos de Lasch são complexos, porque analisam os diversos aspectos da falência da família clássica, mas convergem na relação clara entre o desenvolvimento da economia liberal capitalista e o fim da instituição, tal como ela existia nos Estados Unidos, mesmo nos primeiros decênios da ascensão da burguesia industrial. Entre esses fatores, ele aponta a influência sobre a educação exercida pelos meios de comunicação e entretenimento, e a substituição dos pais pelas escolas subordinadas à ordem de domínio que repele a solidariedade e incita ao egoísmo. Essa separação entre o afeto e a objetividade capitalista transforma, muitas vezes, pais e filhos em estranhos. E entre estranhos, parece ter ocorrido o assassinato de um casal em São Bernardo – uma das cidades de melhor nível de vida do Brasil – pelo seu filho, o mecânico Christiano Martins, de 22 anos. Ou o assassinato de um filho pelo pai.

Mas a família ainda existe, e é no sofrimento dos que, filhos e pais, lutam para salvar seus integrantes do desamor e das drogas –sobretudo do álcool, a mais letal de todas que há ainda alguma esperança.

A DEMOCRACIA NO BRASIL E O PERIGO NO MEDITERRÂNEO

Ainda que muitos dos eleitores de Tiririca o houvessem escolhido para manifestar desprezo e deboche pela política, o seu mandato seria tão legítimo como qualquer outro. Mais de um milhão e trezentos mil cidadãos de São Paulo fazem sua presença na Câmara dos Deputados mais autêntica do que muitas outras, e seu ato foi positivamente político. Pelo que as evidências indicam, ele não comprou votos, nem foi financiado por multinacionais ou grandes bancos.

Se grande parte do eleitorado de São Paulo vota em Paulo Maluf, com o prontuário cívico que se conhece, por que não pode escolher o cidadão Francisco Everardo Oliveira Silva, cearense de Itapipoca, que trabalha desde os oito anos como comediante? Falta-lhe a elaboração intelectual de Chaplin, mas Tiririca não é, nem pretende ser, um gênio como o ator de Luzes da Cidade. Carlos Drummond de Andrade dedica um de seus poemas ao “homem do povo Charles Chaplin”. Carlitos dedicou toda a sua obra ao povo, à democracia e ao humanismo. Espera-se que o desempenho de Tiririca, na Câmara dos Deputados, mereça de um poeta contemporâneo elogio semelhante. Tiririca, torçam o nariz os presunçosos intelectuais e a soberba classe média, é um legítimo homem do povo. Por isso os paulistas o aclamaram, ao receber o diploma de deputado federal no TRE, enquanto o ex-governador Paulo Maluf foi vaiado.

Tiririca estava feliz, ontem, ao participar do primeiro encontro da Comissão de Educação e Cultura. Ele, que não pôde estudar regularmente, compreende a necessidade de bom ensino público. Em razão disso, poderá surpreender com o bom-senso que as dificuldades de vida conferem, e nem sempre as escolas oferecem. Mas a Comissão é também de cultura, e ele é um artista que sabe captar os sentimentos populares e transforma-los em suas cançonetas e em seus bordões humorísticos. Sua cultura é a que vem do chão do Nordeste e da sofrida periferia de São Paulo, cuja humanidade ainda encontra um pouco de alegria nos artistas populares, entre eles, o próprio Tiririca.

Os riscos de guerra

O presidente da Comissão Européia, Durão Barroso, de Portugal, é partidário de uma intervenção militar na Líbia, e, ao que suas declarações indicam, conta com a OTAN. Nos Estados Unidos, apesar das intenções e ameaças belicosas da Sra. Clinton, o Pentágono é mais cauteloso. As forças navais enviadas ao Mediterrâneo, parecem ser apenas intimidatórias. Se os Estados Unidos decidirem criar uma zona de exclusão aérea na Líbia, terão que empregar caças e bombardeiros, com o risco de uma resistência não só das forças de Kadafi, mas também dos rebeldes.

Os europeus, e não só os franceses, parecem mais cautelosos, e com suas razões. Temem uma mobilização geral dos povos árabes, já exaustos das agressões dos paises ocidentais, que não titubearam em apoiar as ditaduras mais sanguinárias, em troca do petróleo. Ainda ontem, um jovem do Kossovo matou dois militares norte-americanos e feriu outros dois, ao atirar contra um ônibus que chegava ao aeroporto de Frankfurt, com os soldados que iriam viajar. Recorde-se que os kossovos sabem do que sofreram, na intervenção da Otan na Iugoslávia, entre outros crimes de guerra, ao serem atingidos por munições radiativas, de urânio empobrecido. Se Kadafi é odiado por parcelas ponderáveis da população, os norte-americanos não são amados.

Há o perigo de a zona inteira transformar-se em campo de resistência armada dos povos árabes, com a interrupção do fornecimento de petróleo. Corre-se também o risco de um incidente com os chineses – muito comum em situações históricas semelhantes. Beijing enviou uma fragata armada ao Mediterrâneo, a fim de defender seus interesses na Líbia e de lá retirar seus cidadãos. Essas duas probabilidades talvez dissuadam os falcões americanos.

DAS GUERRAS CIVIS MUNDIAIS

O físico e filósofo alemão Carl Friedrich Weizsäcker foi personalidade enigmática do século passado. Pertencente à alta nobreza germânica, ele se destacou, ainda muito jovem, como companheiro de Heisenberg nos estudos do núcleo atômico. Em 1938 começou a empenhar-se nos estudos teóricos para a fissão nuclear com fins militares. Em 1939, como discípulo de Heisenberg, Weizsäcker participou de encontro com o estado-maior alemão, quando já se sabia como enriquecer urânio, e se decidiu pela produção da arma. No ano seguinte, o projeto se interrompeu, segundo ele mesmo diria, por obra da graça divina: a Alemanha, já em guerra, não dispunha dos recursos necessários. Há, também, a informação de que Weizsäcker e seus companheiros não estavam entusiasmados com a idéia de dar aos nazistas a arma do juízo final. Apesar disso, ele é um dos cientistas citados por Einstein, como empenhado em produzir a bomba, na carta enviada ao presidente Roosevelt, que levou os Estados Unidos ao Projeto Manhattan.

Weizsäker se tornou, depois de passar algum tempo detido pelos ingleses, notório pacifista. Em 1957, como professor de filosofia em Hamburgo, foi um dos 18 signatários de um documento contra o armamento atômico da Alemanha Ocidental. Weizsäcker nos interessa, neste momento, como filósofo político. Coube-lhe criar duas palavras em alemão que se tornam atualíssimas nestes dias de rebelião nos paises árabes. Uma delas é Weltinnenpolitik, que pode ser traduzida como política interna mundial, e a outra, com a mesma expressividade, é Weltbürgerkrieg, guerra civil mundial.

Weizsäcker pensava no século 20, e considerava a Primeira Guerra Mundial como o início dessa guerra civil planetária, que se prosseguiria com o conflito de 1939-45 e as guerras localizadas que se seguiram. Mas a teoria de Weizsäcker é intemporal. Quando há modo de viver que se torna comum a muitos paises, mediante as informações circulantes, a política interna dos estados nacionais recebe, de uma forma ou de outra, sua influência. É assim que, com mais, ou menos, intensidade, forma-se o que podemos chamar de “política interna mundial”. Esse modo de viver, durante o Império Romano, foi substituído pelo cristianismo, ao se tornar triunfante. Aos pensadores da Igreja coube desfazer os padrões ideológicos antigos, e manter, na Idade Média, o domínio político da Europa, mediante o entendimento precário entre os papas e os reis.

Os observadores políticos e diplomáticos talvez se equivoquem, ao analisar os episódios que se iniciaram na Tunísia e se repetem em todos os países da região. E os norte-americanos e europeus talvez se equivoquem ainda mais, ao incentivar os movimentos - que já se identificam como revolucionários - naqueles países. Ainda não conseguiram deixar o Iraque e o Afeganistão com honra, e já se metem no Norte da África.

O modo de viver, no mundo de hoje, é o do american way of life, baseado no consumo desmesurado de energia e no hedonismo. Dependentes do petróleo alheio, não podem dele privar-se, antes que encontrem um sucedâneo do mesmo custo e desempenho. Por isso se inquietam. As rebeliões, nesses paises árabes – todos eles seus servidores até agora – não lhes prometem tempos melhores. Mas sua intervenção militar contra Gadafi – ou em qualquer outro país da região – será apenas a ampliação de seus problemas. Gadafi, por sua vez, está pagando o preço de sua genuflexão recente. Passou a ser inservível.

As rebeliões árabes se fazem contra a desigualdade e contra os governantes larápios. A internet lhes possibilitou conhecer um pouco da verdade. Onde houver internet, desigualdades, desrespeito aos direitos humanos, e governantes corruptos, há sempre a possibilidade de dias e meses de ira, com conseqüências históricas imprevisíveis.