9 de mar. de 2011

O PETRÓLEO E A FANTASIA

Não há tempos fáceis, na vida de todos nós, e na vida das nações. Daí a necessidade de alguma evasão, como a do carnaval. Em um dos melhores filmes do neo-realismo italiano, “Pão, amor e fantasia”, o grande ator Vittorio de Sica faz um sargento dos carabineiros italianos, enviado para pequena cidade do interior. O enredo do filme, dirigido por Luigi Comencini, gira em torno da frase que lhe dá o título. Em uma das cenas, o protagonista vê o camponês pobre, que mastiga seu pão, e pergunta o que o recheia. - Fantasia, maresciallo, fantasia.

Todos nós comemos o nosso pão com a manteiga da fantasia, porque a realidade é aprisionadora. Somos todos, com grilhões menos ou mais pesados, prisioneiros das circunstâncias, servidores de contratos que firmamos ao longo da vida. Esse é também o fado das sociedades políticas. A fantasia das nações é a utopia. E estamos em uma época em que as utopias políticas, feitas de sonhos e dúvidas, se embaralham, parecem desfazer-se, diante de certo pensamento “científico”, neste momento do neoliberalismo triunfante, cuja presunção é a de que a transcendência não passa de uma equação com fatores falsos. Nessa negação da transcendência até mesmo algumas confissões religiosas militam, ao se aliarem aos senhores do mundo.

Ainda agora, um conhecido homem da ciência, Raymond Kurzweil, benéfico inventor dos sistemas digitais de leitura ótica e sonora (o que nos permite ditar para os computadores), ameaça com o suicídio do homem e nos dá a data marcada, 2045 – daqui a 34 anos. Segundo Kurzweil, os computadores assumirão a nossa inteligência, e seremos subordinados às suas decisões, formuladas pelos seus circuitos, mais velozes do que os nossos neurônios. O homem, então, não morrerá mais, porque a ciência cuidará de seus corpos de forma perfeita, criando e substituindo a perecível matéria de seus órgãos. A quem estaria destinada a imortalidade? A todos os bilhões de seres humanos, ou só aos escolhidos? A vida seria conduzida pelos organismos mortos, como são, e sempre serão, os computadores. Enfim, o que Kurzweil sugere, com sua profecia, é o assassinato da alma, o fim dos sentimentos humanos, o fim da vida. E disso não estamos longe, se não formos capazes de reagir, de refletir com a inteligência filosófica e humanista. Como assinala o físico Ubirajara Brito, a tecnologia sempre foi moderada pela filosofia e pela arte, e a arte e a filosofia foram sufocadas pelo pensamento único triunfante. Os Estados Unidos, movido por esse ânimo, continuam iludidos pelo destino que lhe assinalou Ted Roosevelt: o de ser a polícia planetária, e procuram os meios mais seguros para intervir no deserto encharcado de petróleo. Duas derrotas, a do Iraque e Afeganistão, não lhes bastam.

E como de petróleo se trata, temos que atentar para as preocupações de Washington com relação ao nosso continente. Segundo revelações recentes do Wikileaks, divulgadas pela imprensa argentina, os Estados Unidos consideram o Mercosul uma aliança contra seus interesses, e tentam impedir que o Paraguai, que tem o poder de veto, aprove, no Senado, a incorporação da Venezuela ao bloco. Não devemos nos preocupar só com o óleo de Maracaibo, mas também com as jazidas do pré-sal do Atlântico brasileiro.

Felizmente, para contrariar Mr. Kurzweil, o futuro do homem está em si mesmo, em sua capacidade de indignar-se, de criar, de ter a sábia fantasia da transcendência, e de recuperar o controle da razão humanística sobre as descobertas da ciência e sua aplicação tecnológica. Enfim, temos que recuperar a verdade dos manuscritos gregos de Hermes Trismegisto, traduzidos por Marsilio Ficino em latim: o verdadeiro milagre é o homem.


2 comentários:

Anônimo disse...

Sr. Mauro

Qualquer comentário que eu faça, estará a anos-luz da excelência deste brilhante e sapientíssimo texto (destaco, até para a posteridade, a primorosa, sintética e arguta frase: todos nós comemos o nosso pão com a manteiga da fantasia, porque a realidade é aprisionadora). Bingo!!! Continuo acompanhando, privilegiadamente, seus lúcidos ou reflexivos textos, com a reverência e admiração constumeiras. Por absoluta falta de tempo, não consigo comentá-los tanto como gostaria ou quanto o sr. se faz merecedor dos meus sinceros e singelos elogios. Que Deus continue iluminando sua diferencial inteligência e concedendo-lhe muita saúde, sorte e alegrias.
Respeitosamente,
Marcos Lúcio

Mauro Santayana disse...

Obrigado e forte abraço, Marcos Lúcio.