17 de ago. de 2011

OS AROMAS DO MUNDO

Era, como me disse na primeira vez que nos vimos, um europeu degenerado. Seu caráter, confessava com saudade, fora amolecido pelo calor dos trópicos, e ele os conhecia “na cintura baixa do mundo”, de um lado e do outro. Vivera a boa latitude sul na América, na África e na Ásia, e guardara melhores lembranças de Madagascar, aonde fora como funcionário do colonialismo francês, menos por necessidade e mais pelo exotismo da grande ilha. Ali se convertera a vagabundagem bem amparada pela renda de vinhedos da Gironda, explorados por sua família desde os tempos do ducado de Aquitania.

“Descobri que, nos trópicos, os sentidos se aguçam, porque as coisas têm mais essência. Não me lembro bem dos aromas de nossa casa, e os meninos sempre têm narinas sugadoras, mas não me esqueço do cheiro das mestiças dos portos de Majunga e Tamatave”, me dizia, em um bar da Schiffamtsgasse, em Viena, bem perto de Danúbio.

Tenho sempre o espírito desarmado diante dos estranhos, porque me tocou viver muito entre eles e ser um deles. Naquele tempo eu morava em Praga e ia com freqüência à Áustria. Ele estava de passagem, e fiel a si mesmo, buscara o cais fluvial. “Quem não tem mar se arranja com os rios”, me falava enquanto tomávamos excelente vinho romeno.

E continuou a defender a tese de que só vale a pena viver nos trópicos, mas enquanto se pode bem desfrutar dos prazeres do mundo. “Não são apenas os cheiros: são também as cores. Não há delicadeza nos tons; são agressivos. Tampouco se separam bem uns dos outros, as cores acompanham a vontade geral de promiscuidade e de troca de identidade: há verdes que amarelam, e amarelos que invadem o campo do azul. Agora, quando chegam as cataratas aos olhos, para que servem os trópicos? Quando bambeiam todas as pernas do homem, por viver entre as mulatas da Bahia e as lisas indochinesas? Não entendo como, na sua idade você está aqui na Europa.”

Não me convinha , então, revelar-lhe os motivos. Para certos assuntos, os estranhos devem continuar estranhos, por menos cautelosos sejamos. Do vinho, violando o bom gosto e as cautelas digestivas, passamos para a cerveja e salsichas, e nos despedimos no Ring, com a indiferença daqueles que não esperam reencontros.

Mas nos revimos. Missão profissional me levara a St. Jean de Luz, no país Basco francês. Ali se vive enganosa segurança e eu, que devia encontrar alguns bons rapazes de Euzkadi-Sul, tinha de me cuidar para não dar bandeira aos agentes espanhóis que deviam estar de olho em meus contatos. Só o vi, felizmente, depois de cumprida a tarefa. Estava montado em velha motocicleta e chegou à estação ferroviária no momento em que eu descia do táxi. Fez-me trocar o destino e seguir com ele até sua terra. Despachou a moto para o destino que era o seu e que me impunha, e se disse livre para um copo de vinho, se eu pagasse. “Da última vez, a conta foi minha, você se lembra? Agora é a sua vez”.

Enquanto esperávamos o trem tomamos vinho navarro, porque ele já não se fiava dos burdôs. “Ainda bem que não há mais família, nem há mais vinhedos. Vendi-os há tempos. Agora os irrigam tanto, para que produzam, que o vinho perdeu a postura.”

Contou-me que a fortuna acabara. Por sorte não se casara, não deixava herdeiros na miséria. Fizera a sua parte, gastando o dinheiro em viagens. Só lhe restava pequena propriedade, da qual não podia desfazer-se, e que recebia agora seus cuidados. Eu iria vê-la. Contava também que com a venda dos bens maiores, levantara dinheiro para derradeira viagem em torno do mundo, em latitude certa e preferida: na altura do paralelo 20, um pouco acima do trópico de Capricórnio.

Não fora boa a volta. A mente ainda estava acesa para certos prazeres, mas os nervos e músculos já se encontravam afeitos ao desconsolo. “Você já ouviu falar em holografia? É um sistema novo que serve para reproduzir imagens em três dimensões. As belas malgaches que eu vi, agora, eram como dessas estatuas de sombra. Eu as via e as queria, mas meus braços não as tocavam.”

Cheguei à aldeia, que um dia fora a vida do derruído castelo da família, na garupa de sua moto. Algumas pessoas saudavam-no com reverência, outros fingiam não vê-lo. “Infelizmente não posso oferecer-lhe hospitalidade, você a recusaria. Eu mesmo, no principio, sentia-me mal. Mas, como é a única propriedade inalienável que me deixaram os antepassados, tenho que me acostumar a pernoitar ali”.

A propriedade era sólida, de granito escuro, tosco, as quinas alisadas pelo sopro dos séculos, um amplo e majestoso tumulo, quase uma capela, adornada por anjos de olhos baixos, jarros sem flores, a relva descuidada em torno do jazigo.

“Ajeitei-o por dentro, dá para espichar as pernas e cozinhar a sopa. O pároco quis expulsar-me, mas o juiz, livre-pensador, reconheceu-me o direito. É uma espécie de adiantamento do legado”, explicou. “Afinal, no futuro, eu vou ficar aqui.”

2 comentários:

Iconoclasta disse...

no alvo como sempre; a internet tem potencial de ser o mesmo que a imprensa de tipos móveis de Gutemberg que libertou a palavra escrita dos conventos medievais e a entregou a humanidade como o fogo de Prometeu;
se depois ela foi aprisionada pelas corporações é um desdobramento natural, mas muito mais dificil de ocorrer com a rede mundial de computadores. Alvissaras.

Mauro Santayana disse...

Obrigado, e um abraço.