28 de mai. de 2013

ESTÓRIA DE DOMINGO - A FORJA.


Levou cinqüenta anos para desc­obrir seu próprio mistério, mas já era tarde para reendereçar o destino. Ao longo da vida, os quadros da memória se confundiam com as gravuras vistas quando menino; não sabia certo se eram cenas alheias ou vividas: o carro-de-boi, os cobertores vermelhos e azuis, o lenço de seda cobrindo a cabeça do homem de dentes de ouro e bigode com a ponta afinada. O homem tinha a cara de pirata, ou o pirata na capa de "A Ilha do Tesouro" tinha a sua cara? O carro-de-boi era real, real o rinchar de seu eixo cocão, ou tudo aquilo eram memórias dos outros, enfiadas em seu nebuloso mundo?

Havia aceitado, com algum en­tusiasmo, a identidade que lhe deram. Era bonito saber-se órfão de pessoas belas e jovens, mortas no acidente de trem. Ali estava o retrato dos dois, pintado com es­malte: rosto com rosto, ela, com as sobrancelhas finas e altas, como era a moda; ele, de gravata com losangos. Tudo falso.

Agora, ao saber da verdade, per­guntava-se de onde teriam vindo os pais do retrato. Possivelmente, os velhos o haviam encontrado em algum bric-a-brac, e um deles teria comentado: "Olha, até que se parecem com o menino, vamos levar?” Estariam vivos ainda os pais-de-retrato? Talvez, e se soubes­sem de quanto ele os havia querido amar, ficassem comovidos. Mas faltam ao mundo os anjos comunicadores. Ele mesmo, quando ouvia falar no trem que se despenhara e fora engolido pelo mar (era a versão) , fazia força para imaginar os pais vivos, resgatados por um barco estrangeiro, vivendo longe, talvez na China ou na Mongólia, e ajuntando dinheiro para voltar. Se houvesse um anjo comunicador de sentimentos, ele poderia ter sido  filho perdido que talvez faltasse ao casal da fotografia: debaixo de seus olhos havia uma sombra de carência.

Agora sabia a verdade. O carro de boi, o homem de lenço amarrado à cabeça, a fogueira perto da lagoa, o pé ferido e inchado e a folha de desconhecida erva usada como curativo, tudo era real. Mas se falsos eram os pais-de-retrato, e os outros, os verdadeiros?

“Agora, que não tem mais remédio, e o senhor já tem netos, vou lhe contar todas as coisas direito", disse dona Afonsinha. E lhe falou da morte da mãe, de parto mal curado, o desespero do pai, meio adoidado, que troca o filho pelos trens de ferreiro com os ciganos, e passa os meses seguintes tentando forjar turbinas de moinho de água.

Até  os três anos viveu entre os zíngaros, e desse tempo vinham as fortes e confusas lembranças. O carro de bois, o seu chiar continuado, uma noite de muitos tiros, certa manhã em que viajava no surrão de uma jumentinha, debaixo de cajueiros, e um caiu lá dentro, cheiroso, bem maduro. O cigano de pano na cabeça cortando cebola com a faca da cintura, a mulher que tinha cheiro de fuligem, os cachorros que saltavam de um lado a outro da fogueira, a carne assada em espetos de ferro, o brilho dos tachos de cobre quando neles batia o sol da manhã. Não eram gravuras, dos livros da fazenda, mas a sua vida de menino. Por que o revenderam?

A senhora do segredo narrou-lhe, então, o episódio de que não se lem­brava de todo: as tropas do tenente Fonseca despejando fogo, com or­dem de matar a ciganada que infestava o baixo Jequitinhonha, depois da morte, a machadinha, de um sargento em Rio do Prado. A ajuda dos praças baianos, vindos de Ilhéus, e armados de mosquetão curto, de tiro mais seco e mais preciso, para ajudar no acabamen­to daqueles ladrões de cavalo e de crianças. Os três meninos deixados na fuga, no arraial sem nome, pelo cigano Inácio, que era maneta.

“Os três ficaram na cafua de uma negra sozinha. Depois o herege voltou, pegou dois dos meninos, que ele achava que eram arraçados de ciganagem, e vendeu o outro por cinqüenta mil réis. O coronel com­prou, a mulher dele, em glória sempre esteja, ficou satisfeita; era de barriga miúda, não tinha filhos, não sabia fazer crochê, nem entendia de criação" – resumiu a velha.

Ele retirou do bolso o maço de notas, colocou debaixo do traves­seiro da mulher que, agonizante, o mandara chamar, e disse, na saída, ao velho que enchia o cachimbo, ter deixado um ajutório. O velho agradeceu:

–  Vai ser no jeito pro enterro. De hoje não passa a agonia, o padre garantiu. O que foi que ela queria falar para o senhor, hein?
O deputado olhou para o seu próprio retrato com a propaganda eleitoral na parede, e respondeu, sério:


– Segredo, Juca. Segredo.

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